O dilema do CAR para os Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa

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O dilema do CAR para os Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa

O dilema do CAR para os Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa

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O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um instrumento para inserir informações ambientais dos imóveis rurais – através de autodeclaração – na plataforma virtual do Sistema de Cadastramento Ambiental Rural do Governo Federal ou Estadual (SICAR). O CAR passou a ser obrigatório com a aprovação do novo Código Florestal (Lei 12.651/2012) visando à regularização ambiental destes imóveis, como as áreas de Reserva Legal (RL), Áreas de Preservação Permanente (APPs), áreas de uso consolidado e áreas de uso restrito, área remanescente de vegetação nativa, bem como aquelas que devem ser recuperadas.

No bioma Pampa as áreas com uso para pecuária em campo nativo devem ser identificadas como remanescentes de vegetação nativa por se tratar de um manejo conservacionista da vegetação nativa praticado, em muitos casos, há mais de 300 anos. Portanto, não devem ser identificadas como “área rural consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris” como havia estabelecido o decreto nº 52.431/15, do governo do estado do RS, em junho de 2015. Esta foi uma decisão da 10ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, após ajuizamento de uma ação civil pública pelo Ministério Público Estadual (através do Núcleo de Proteção ao Bioma Pampa ligado à Promotoria de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre). Os argumentos técnicos chegaram ao MP através de pesquisadoras e pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Rede Campos Sulinos. Para alertar sobre os riscos e equívocos da aplicação do Código Florestal e do CAR sobre as áreas de campos nativos, a Rede Campos Sulinos elaborou um material orientador.

A pecuária em campo nativo, no RS, apesar de ter sido, por muito tempo, associada erroneamente a grandes produtores, é uma atividade predominantemente desenvolvida por pecuaristas familiares. Existem no estado “em torno de 60 mil famílias de pecuaristas familiares, as quais representam 70% do total de empreendimentos rurais dedicados à pecuária de corte”*. Somado a isso, em novembro de 2016, o Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa apresentou formalmente a identidade social de “Pecuarista Familiar” junto ao Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) solicitando que esta identidade passasse a ser considerada segmento integrante do CNPCT. A argumentação utilizada no documento encaminhado ao CNPCT é de que Pecuaristas Familiares se identificam como Comunidades Tradicionais, pois “expressam sua cultura cotidianamente, através do modo de vida, de um conjunto de ofícios, de formas próprias de organização e por meio da ocupação, uso e conservação de recursos naturais, em especial de ecossistemas campestres – orientando-se por conhecimentos tradicionais que são transmitidos através de gerações.”

Quando da elaboração da plataforma do CAR, entretanto, esta relação entre pecuaristas familiares e os campos nativos do estado não foi considerada, tampouco a relação dos Povos e Comunidades Tradicionais presentes no Rio Grande do Sul, com os biomas Pampa e Mata Atlântica. Esta realidade se repete em relação a todos os Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, em todos os biomas e estados brasileiros. Tarcísio Feitosa da Silva, mestre em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável, em entrevista para a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE, afirma que “embaixo deste CAR em que só podemos ver de imagens de satélite, há ribeirinhos, quilombolas, indígenas, castanheiros, seringueiros e muitos outros povos que não aparecem nas imagens”. Tarcísio afirma ainda que o CAR não foi criado com o objetivo de regularização fundiária, mas que o discurso do reconhecimento da posse e regularização da propriedade rural, feito como uma forma de convencimento para adesão ao CAR – principalmente entre grandes e médios detentores de terras na Amazônia – ganhou aceitação por parte deste público, em parte devido ao desespero de regularizar áreas acima do limite constitucional e também por verem os territórios coletivos de Povos e Comunidades Tradicionais como ameaças à propriedade privada. “Não colocamos em xeque a importância da ferramenta, mas ela deve servir ao seu propósito máximo que é garantir o planejamento territorial com as retaguardas ambientais de proteção aos ecossistemas e sua biodiversidade, de uso racional da terra e a recuperação de áreas degradadas quando for o caso” afirma Tarcísio que, além dos aspectos positivos do CAR, aponta para preocupações: “O negativo é que o CAR foi contaminado na Amazônia, passou a ser uma ferramenta de grilagem das terras públicas e indutora de conflitos agrário e fundiário. (…) Há processos judiciais em que a prova material de ocupação da terra por um fazendeiro é a apresentação do CAR. Está aí a diferença. O CAR é um cadastro, não é um registro ou um documento emitido pelo órgão ambiental. O órgão ambiental apenas recepciona as informações e as coloca em uma base de dados”.

Com o atual Sistema Nacional de Cadastramento dos Imóveis Rurais (SICAR) os Povos e Comunidades Tradicionais correm o risco de serem invisibilizados, de não terem seus territórios tradicionais sequer considerados (sejam eles ocupados ou reivindicados) e ainda de sofrerem com processos de grilagem.

Em matéria publicada pelo Instituto Socioambiental – ISA, Carlos Ramos, engenheiro florestal e consultor socioambiental da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), informa que em algumas regiões existem diversos cadastros de imóveis rurais no SICAR, mas sem o conhecimento de famílias que lá vivem, e cita o exemplo de famílias ribeirinhas que vivem na Ilha do Marajó, no Pará. “Existem várias famílias morando e tem muito CAR em cima delas e elas nem sabem disso. Segundo a legislação brasileira, você só pode regularizar áreas acima de 2.500 hectares se passar pelo Congresso nacional. Esses CARs [diz apontando no mapa], muitos deles estão acima de 2.500. Então não é só a grilagem, é grilagem com latifúndio”.

A reportagem do ISA aponta ainda que, somente no estado do Pará, 1.214 imóveis rurais foram registrados em Terras Indígenas, cuja extensão totaliza uma área de 1.234.162,67 hectares. Em Unidades de Conservação existem 139 imóveis rurais sobrepostos, correspondendo a uma extensão de 308.422,51 hectares.

O professor no programa de pós-graduação em direito na Universidade Federal do Pará (Ufpa) Girolamo Domenico Treccani, entrevistado pelo ISA, avalia que o CAR esteja sendo utilizado para outros fins fora do propósito para a qual foi criado, e alerta que as maiores vítimas serão as populações tradicionais. Esta é também a opinião de Tarcísio, conforme reportagem da FASE que sugere que, para a defesa dos territórios tradicionais “o CAR deve se comunicar com outras bases, por exemplo: a Cartografia Social, com a qual pesquisadores se lançam com as comunidades para identificar seus territórios”.

Um país com uma incrível sociodiversidade, mas… ignorada pelo CAR

Ao contrário do que é disposto nas garantias legais nacionais e internacionais, o CAR foi imposto para Povos e Comunidades Tradicionais, sem que a dinâmica, a temporalidade, a cosmologia e os territórios tradicionais destes Povos e Comunidades fossem considerados. a exemplo de Povos Indígenas e Comunidades Quilombolas,

Há ainda muitas perguntas sem resposta, a exemplo das questões lançadas por Amilton Cesar Camargo, da Comunidade Quilombola Corredor dos Munhos, em Lavras do Sul, RS e representante do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa: “o governo tem a responsabilidade de contratar assessoria para os Povos e Comunidades Tradicionais, quando e como isso vai acontecer? as organizações que irão assessorar conhecem e se identificam com as comunidades? Como ficam as diferentes formas de uso da terra e do território, considerando a complexidade dos contextos que vão desde o uso familiar até o coletivizado, de uma parte ou de toda área? Como ficam os territórios reivindicados? e quando as comunidades moram em APPs?” essas são algumas de muitas perguntas, apenas sobre questões que envolvem as Comunidades Quilombolas.

Há diversos outros Povos e Comunidades Tradicionais que fazem uso do território a partir de outras lógicas (áreas não coletivas, referências de passagem ou migrações, locais sagrados, etc).

Veja abaixo depoimento do Povo Pomerano, publicado em outubro de 2017 no Jornal do POMERBR (ano II, edição 31):

CAR: o caso do Povo Pomerano

Somos camponesas e camponeses. Praticamos a agricultura familiar. Vivemos em pequenas propriedades. A maioria de nós já fez o CAR! E agora? Nossa identidade não é visível no CAR Imóveis Rurais! 

O CAR é um instrumento de monitoramento ambiental, que busca mapear TODAS as áreas rurais e tem finalidade de visualizar passivos ambientais. Ou seja, um processo detalhado que será analisado a partir do Código Florestal. A análise pelos órgãos ambientais será cotejada com imagens e todos os demais dispositivos cabíveis, de modo a verificar a adequação das áreas aos parâmetros das leis ambientais vigentes. 

Somos um segmento que tem práticas de conservação como uma tradição. Conservamos encostas, mantemos a vegetação próxima aos cursos de água, mantemos vegetação nativa, realizamos conservação pelo uso. Como isso nos impacta? 

Somos também agricultoras e agricultores familiares e em muitas situações o CAR está sendo solicitado para que possamos acessar créditos e políticas públicas. E em vista disso, muitas e muitos de nós já fizemos o CAR e temos o número de registro do mesmo, na condição de Imóveis Rurais. 

Ocorre que o Módulo CAR Territórios Tradicionais (Povos e Comunidades Tradicionais – PCTs) é na verdade o espaço correto para fazermos essa declaração. O Serviço Florestal não disponibilizou esse Módulo ao mesmo tempo do Módulo Imóveis Rurais no SICAR, e isso fez com que a maioria de nós fizéssemos o CAR como agricultura familiar. 

Fazendo dessa forma, nossa identidade de Povo Pomerano não será visível. Portanto, precisaremos, todas e todos, migrar os dados para o Módulo CAR -PCTs. 

Como vamos fazer? Pelas AUTODECLARAÇÕES! Por meio desse instrumento, poderemos informar o Serviço Florestal (ou o órgão estadual) de nossa condição de Povo Pomerano. Com isso, além de nossa identidade ser visível no território nacional, nosso modo de vida será respeitado, pois a nossa maneira de viver não dissocia Cultura e Ambiente. Somos parte de uma totalidade. Fazendo o CAR nesse módulo, a situação ambiental de nossas propriedades será analisada de modo mais respeitoso na relação com nossas tradições. 

Somos Povo Pomerano. Somos Povo Tradicional. Somos POMERBR.

* Pecuária familiar no Rio Grande do Sul: história, diversidade social e dinâmicas de desenvolvimento”. Organizado por Paulo Dabdab Waquil et al., Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. (citação da página 12).

CampoNativoNaoEAreaRuralConsolidada

Fontes:
https://fase.org.br/pt/informe-se/noticias/car-e-usado-na-legalizacao-da-grilagem/
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/tentativa-de-regularizar-terras-com-car-causa-polemica