Dia do (fim) do Bioma Pampa?
Dia 17 de dezembro é o dia de um bioma em extinção, o Dia do (fim) do Bioma Pampa. O dia em que se olha para a paisagem que já é um “deserto verde” de soja, eucalipto e pinnus com receio de que esses maciços irão se expandir ainda mais; o dia em que se olha para o campo nativo, para os roçados, as “aguadas” e cacimbas com receio de que serão destruídos ou envenenados por monocultivos de grãos e projetos de mineração; o dia em que se olha para cerros de pedra e regiões lagunares com receio dos impactos da instalação de parques eólicos, pouco mencionados na grande mídia; o dia em que os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) – guardiãs e guardiões do bioma Pampa – olham para o que está avançando sobre seus territórios e enxergam o racismo ambiental, a ganância e todas as formas de injustiça, em especial a injustiça fundiária. O dia em que os Povos e Comunidades Tradicionais do bioma Pampa exigem respeito aos seus direitos étnicos e coletivos, condições para efetiva participação e voz em debates públicos e acadêmicos, reparação histórica, regularização fundiária e salvaguardas socioambientais nos planos e projetos de Estado e de governo.
O Dia do (fim) do Bioma Pampa pode ser adiado! Para isso, é preciso entender que não há proteção ao Pampa sem proteção aos direitos dos Povos do Pampa, que vivem de forma inter-relacional com os ecossistemas e paisagens do bioma e os conservam desde sempre! É tempo de fazer valer as garantias legais, constitucionais e supraconstitucionais dos Povos e Comunidades Tradicionais, como a Constituição Federal de 1988, o Decreto 4.887/2003 – que regulamenta o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) sobre a regularização de territórios kilombolas -, o Decreto 6.040/2007 – que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais -, e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), dentre outros marcos legais que garantem direito a seus modos de vida, à escolha de suas prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete suas vidas, crenças, bem-estar espiritual e as terras que tradicionalmente ocupam, bem como o direito à consulta prévia, livre e informada referente aos empreendimentos e obras com impacto potencial.
Denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
No mês do Bioma Pampa, o Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e a Fundação Luterana de Diaconia (FLD) apresentaram petição à Relatoria Especial para os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a fim de que esta possa tomar conhecimento da situação de violação dos direitos econômicos, sociais e culturais de Povos e Comunidades Tradicionais no estado do Rio Grande do Sul (RS), em curso e iminentes, frente aos planos e projetos econômicos do governo estadual, elaborados sem a devida conclusão, divulgação e consideração do Relatório e Produtos finais do Zoneamento Ecológico-Econômico do RS (ZEE-RS) e, portanto, em desacordo com políticas de ordenamento territorial e Salvaguardas Socioambientais.
A denúncia sugere ao CIDH, dentre outras questões, a ampla divulgação, pelo governo do estado do RS, do Relatório Final do ZEE-RS, promovendo o debate público junto à sociedade; a avaliação dos riscos socioambientais causadas por planos, projetos, mapas e zoneamentos elaborados após a conclusão do ZEE-RS, incluindo o seu impacto potencial; e a inclusão de salvaguardas socioambientais em todo e qualquer plano ou projeto de Estado ou de governo no Rio Grande do Sul.
Políticas de ordenamento territorial e salvaguardas socioambientais
Desde sua origem, o Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, em parceria com a FLD, tem acompanhado e incidido nas políticas de ordenamento territorial do estado do RS e do bioma Pampa, no sentido de dar visibilidade à sociobiodiversidade existente, mas, especialmente, com o intuito de que o estado considere sua presença e, consequentemente, seus direitos étnicos, coletivos e territoriais nos diagnósticos, prognósticos, no planejamento econômico, nas políticas públicas e em todas as ações de estado e de governo.
Dois importantes processos de construção de políticas de ordenamento territorial aconteceram entre os anos de 2016 e 2018, com a participação de diversas organizações, da FLD e de integrantes do Comitê de diferentes identidades socioculturais: a atualização das Áreas Prioritárias para a Conservação, Uso Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade do Pampa, conduzido pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) com recursos do FUNBIO/PROBIO 2, tendo como consultoria contratada o Instituto Curicaca (2017-2018); e a elaboração do Zoneamento Ecológico-Econômico do Rio Grande do Sul (ZEE-RS), conduzido pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA) por meio do Programa de Apoio Retomada do Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (Proredes) com recursos do Banco Mundial (BIRD) e tendo como consultoria o Consórcio Codex Remote/Acquaplan/Gitec Brasil/Gitec GMBH (2016-2018).
Quanto à atualização das Áreas Prioritárias para a Conservação, Uso Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade do Pampa, diversas ações foram fortemente recomendadas para cada uma das Áreas Prioritárias, a exemplo da criação e ampliação de Unidades de Conservação, da regularização de Terras Indígenas e Kilombolas e territórios de Povos e Comunidades Tradicionais, do manejo sustentável da biodiversidade e da pecuária em campo nativo, do turismo sustentável, da fiscalização e controle de atividades ilegais, da limitação e regularização de atividades degradantes, de estudos de avaliação de impactos sinérgicos no licenciamento, de desenvolvimento de mecanismos de apoio financeiro, dentre outras. O mapa e as ações constam no site do MMA e, apesar de estarem disponíveis para orientar planos e projetos de Estado e de governo, tem sido desconsiderados.
A elaboração do Zoneamento Ecológico-Econômico do Rio Grande do Sul (ZEE-RS) contou com um total de 38 Oficinas (de pré-diagnóstico, de diagnóstico, de pré-prognóstico, de prognóstico e de validação) para a elaboração de 47 produtos (incluindo uma minuta de Proposta de Lei para sua implementação legal, que foi arquivada), que visavam atender objetivos pautados pela conservação ambiental e desenvolvimento sustentável e salvaguardas socioculturais relacionadas a Povos e Comunidades Tradicionais condicionadas pelo BIRD, órgão financiador.
O ZEE-RS teve investimento de milhões de reais e seu Relatório Final nunca foi divulgado pelo governo do estado do RS junto à sociedade civil. Informações obtidas em um Relatório preliminar apontam para recomendações bastante conservacionistas – considerando componentes de infraestrutura, produtivo, social e institucional -, mas sempre apontando para a conservação de ecossistemas e serviços ambientais; e indicam a presença de 138 Terras Indígenas em 93 municípios (dos povos Guarani, Kaingang, Charrua e Xokleng), 167 comunidades Kilombolas em 85 municípios e diversas comunidades pesqueiras (16.854 pescadoras e pescadores em 2015) em 249 municípios no RS.
Enquanto o ZEE-RS fica “engavetado” pelo governo estadual, surgem inúmeros planos, projetos, mapas e zoneamentos para o RS, com enfoque quase que, exclusivamente, econômico, com o objetivo de atrair grandes grupos de investidores financeiros, desrespeitando recomendações fundamentais para um ordenamento territorial com justiça social, ambiental e econômica, apontadas pelas oficinas de diagnóstico e prognóstico e construídas com alto investimento de recursos públicos, conhecimento científico e participação social. Como exemplo, pode-se citar: o Mapa Econômico do RS – que também é um projeto do Jornal do Comércio, com apoio de instituições do setor econômico – e o Mapa Estratégico do RS (ambos para o período de 2023-2026); o Plano Plurianual (2024-2027) e o Plano de Desenvolvimento Econômico, Inclusivo e Sustentável (lançado em 2024), todos lançados recentemente pelo governo estadual. As mais de 300 comunidades tradicionais (povos indígenas, kilombolas e da pesca artesanal), presentes em cerca de 50% dos municípios do RS, apontadas pelos relatórios preliminares do ZEE foram explicitamente desconsideradas de tais planos e projetos.
O Zoneamento Ecológico Econômico do Estado do RS deveria ser balizador de zoneamentos específicos, considerando aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais e a presença de comunidades tradicionais. Não foi o caso da recente aprovação do Zoneamento da Silvicultura no Estado do Rio Grande do Sul, aprovada pela Resolução 498/2023 do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), revogando resolução anterior que considerava a necessidade de proteger recursos hídricos, ecossistemas e patrimônio cultural material e imaterial. A alteração do Zoneamento da Silvicultura, associada ao programa RS+Renda, da CMPC Celulose, irá ampliar os maciços (já problemáticos) de eucalipto, pinnus e acácia. De forma semelhante, tem se dado o avanço de projetos de parques eólicos, mineração, hidrogênio verde, dentre outros, sem a devida consideração das recomendações do ZEE-RS e das ações recomendadas para cada Área Prioritária para a Conservação do Pampa e, consequentemente, sem possibilidade de controle social efetivo.
Recomendações conservacionistas deveriam ganhar ainda mais relevância nos planejamentos e ações do governo do RS, considerando a catástrofe climática com as inundações de maio de 2024. Entretanto, o ZEE não foi mencionado no processo de resposta à emergência no RS, nem tampouco foram consideradas as ações recomendadas para as Áreas Prioritárias para a Conservação do Pampa.
Quando os Povos do Pampa terão voz e vez?
O Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, inserido em uma rede de apoio e parcerias – que envolve associações comunitárias de PCTs, organizações e movimentos sociais, institutos de educação, universidades e fundos de apoio, como Fundo Brasil de Direitos Humanos e Instituto Koinós, além do apoio estratégico e parceria da FLD -, vem promovendo processos de formação emancipatória e antirracista, a exemplo da Formação de Operadoras e Operadores em Direitos Étnicos e Coletivos dos Povos do Pampa, com enfoque Kilombola, que teve início em outubro de 2024 e será finalizado em março de 2025 e tem refletido sobre os conflitos socioambientais que ameaçam seus modos de vida e territórios tradicionais, em especial a NÃO REGULARIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS TRADICIONAIS e as violações de direitos que precisam ter atenção cada vez maior por parte de órgãos como a Defensoria Pública e do Ministério Público Federal.
O Comitê também tem promovido e participado de debates públicos e eventos acadêmicos, a exemplo do II Congresso Internacional do Pampa: dos direitos à natureza às catástrofes climáticas que ocorreu entre os dias 12 a 14 de dezembro, em Santana do Livramento (RS) e Rivera (UY), e do evento paralelo VIII Escuela Internacional Campesina Popular e interétnica do Grupo de Trabalho CLACSO Estudios críticos del desarrollo rural, com participação de representações do México, Argentina, Brasil e Uruguai.
Charlene Santana, kilombola de São Lourenço do Sul (RS), Evelin Xavier dos Santos, kilombola de Santana do Livramento (RS), Viviane Machado Alves, pescadora artesanal de Rio Grande (RS), e Fernando Aristimunho, pecuarista familiar tradicional do Pampa de Quaraí (RS), foram algumas das poucas vozes dos Povos do Pampa nesses eventos, denunciando as violações e a pouca representatividade de Povos e Comunidades Tradicionais nessas atividades, que precisam urgentemente repensar seu formato de composição de mesas, programação e formas de mobilizar e viabilizar a participação efetiva de Povos e Comunidades Tradicionais, buscando a coerência entre o discurso e a prática, a reparação histórica também da academia e o protagonismo popular fundamental para que o Dia (do fim) do Bioma Pampa seja adiado!