Quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro!

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Encontro fortalece a defesa dos direitos étnicos e coletivos

do Kilombo São Miguel dos Pretos 

“A Associação Comunitária Vovô Geraldo, entidade representativa da Comunidade Quilombola São Miguel dos Pretos, localizada no município de Restinga Seca (RS), vem a público repudiar, com veemência, a sentença proferida pela 3ª Vara Federal de Santa Maria, que anulou a Portaria n.º 258/2007 e o processo administrativo do INCRA que reconheciam oficialmente o território tradicional quilombola da nossa comunidade.” (Nota pública do Kilombo de São Miguel dos Pretos sobre a sentença que nega seus direitos étnicos e coletivos)

 Comissão Kilombola

Ao longo de 2024 e 2025 lideranças de 20 comunidades kilombolas do bioma Pampa, vinculadas a seus movimentos representativos fortaleceram sua caminhada de luta, resistência e formação política. Estas lideranças participaram do Curso de Operadoras e Operadores de Direitos Étnicos e Coletivos, que contou com 9 encontros on line e 2 presenciais e teve o objetivo de fortalecer o protagonismo kilombola na luta pela efetivação de direitos, em especial, o direito ao território.

Desse processo nasceu a Comissão Kilombola, composta apenas por pessoas kilombolas, lideranças da Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul – FACQ-RS, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e por Operadoras e Operadores de Direitos Étnicos e Territoriais de comunidades Kilombolas do bioma Pampa.

 

Comunidade kilombola São Miguel dos Pretos

A comunidade kilombola São Miguel dos Pretos, em Restinga Seca, atualmente composta por cerca de 200 famílias, está localizada na região central do estado do Rio Grande do Sul (RS), em uma região de transição entre os biomas Pampa e Mata Atlântica, onde foi instituído o Geoparque da Quarta Colônia. A comunidade foi certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP) em 2004 e no ano seguinte por meio da sua Associação Comunitária Vovô Geraldo, entrou com pedido de regularização de suas terras junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) composto por informações detalhadas de caráter histórico, antropológico, fundiário e geográfico estabelecendo, e a posterior emissão da Portaria, em 2007, que reconheceu oficialmente os limites do território kilombola, ocorreram em total conformidade com os itinerários legais previstos.

A comunidade está aguardando as próximas etapas da regularização fundiária: a publicação de um Decreto declarando a terra como de interesse social para desapropriação, a avaliação das terras ocupadas por não kilombolas, com posterior indenização e a Titulação Coletiva do Território. Portanto, desde que iniciou o processo no INCRA, a comunidade aguarda há 20 anos para que o Estado faça o reconhecimento do seu território.

 

O Conflito

Proprietários de imóveis rurais na localidade de São Miguel questionam a existência de comunidade kilombola na região de São Miguel em Restinga Seca, ingressando com ação judicial em 2007. Em 2010 o juiz declarou a nulidade do processo administrativo do INCRA que reconhecia o kilombo. O INCRA e o Ministério Público Federal (MPF) entraram com recurso e a sentença foi anulada.

O juiz entendeu necessário que se fizesse prova pericial e tentou nomear vários peritos desde 2015. Vários peritos negaram, por diversos motivos, até que foi nomeado o perito historiador, Alejandro Jesus Fenker Gimeno, em 2020. No mesmo ano a comunidade ingressa como parte e passa a receber a assessoria jurídica da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP/RS).

No dia 14/06/2025 é publicada a sentença do juiz Rafael Tadeu Rocha da Silva da 3ª Vara Federal de Santa Maria, RS, declarando nulo o processo administrativo e a Portaria que reconhecia o território kilombola de São Miguel dos Pretos em Restinga Seca. Desde então a sentença tem sido fortemente contestada, especialmente pela inconsistência judicial e científica da perícia, e que levaram a grave erro na sentença.

Conforme Manifestação emitia pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) “o uso do conceito de quilombo que sustenta a sentença de nulidade está em total desacordo com a literatura atual pertinente ao campo temático dos quilombos no Brasil, com os direitos constitucionais, com o Decreto 4887/2003 e com o que assegura a Convenção 169 da OIT. O equívoco analítico que sustenta a sentença de fato compromete uma violação de direitos, uma vez que desconsidera o direito de sujeitos de direitos, ao autorreconhecimento em seus próprios termos, a partir de suas próprias formas de identificação, organização e de produção de resistência no tempo presente.”

Não podemos permitir que uma sentença injusta interrompa a nossa luta centenária e viole nossos direitos!” (Nota pública do Kilombo de São Miguel dos Pretos)

  

Manifestações de Repúdio

Frente a esta ameaça direta à comunidade de São Miguel dos Pretos – e à todas as comunidades kilombolas – a Associação Comunitária Vovô Geraldo emitiu Nota Pública. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) emitiu Manifestação em defesa e afirmação dos direitos da comunidade quilombola São Miguel dos Pretos e o Grupo de Trabalho Emancipações e Pós-Abolição da Associação Nacional de História RS (GTEP-ANPUH/RS) publicou uma Carta de Repúdio contra a perícia que baseou a sentença de anulação da Portaria do INCRA e do processo administrativo que oficializavam o território da Comunidade Kilombola São Miguel dos Pretos. O Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) também emitiu Manifesto em favor da comunidade.

Em sua Nota Pública, o kilombo de São Miguel dos Pretos convoca para manifestações de demais organizações comprometidas com os direitos étnicos e coletivos:

Convocamos todas as comunidades quilombolas, movimentos negros, organizações de direitos humanos, universidades, entidades da sociedade civil e cidadãs e cidadãos comprometidos com a justiça racial a se somarem à nossa luta!” (Nota pública do Kilombo de São Miguel dos Pretos)

 

O Encontro Kilombola em Restinga Seca

Após o encerramento do Curso de Operadoras e Operadores de Direitos Étnicos e Coletivos, em abril de 2025, a Comissão Kilombola passou a se reunir virtualmente para dar continuidade as atividades de formação e atuação em direitos, quando foi surpreendida, em junho, com a notícia da sentença. Desde então a Comissão Kilombola – composta apenas por integrantes kilombolas – estabeleceu parcerias com o Núcleo Interdisciplinar de Interação Jurídica Comunitária – Residência (NIJuC-R)  da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e com a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP/RS) para realização de um encontro para que se ouvissem as vozes kilombolas, nos dias 23 e 24 de agosto, na própria comunidade de São Miguel dos Pretos, em Restinga Seca.

O Encontro, planejado e organizado por kilombolas, tratou desta e de outras violações de direitos – gravíssimas e sistemáticas – que afetam a vida de milhares de famílias kilombolas no Pampa e em todo estado do Rio Grande do Sul.

Participaram do Encontro cerca de 100 pessoas de comunidades kilombolas de diversos municípios: São Miguel dos Pretos (Restinga Seca), Rincão da Chirca (Rosário do Sul), Ibicuí da Armada (Santana do Livramento), Coxilha Negra, Picada e Boqueirão (São Lourenço do Sul), Arnesto Pena (Santa Maria), além de representantes do INCRA, da Secretaria de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Tradicionais (SETEQ) e do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários (DEMCA), vinculados ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), organizações da sociedade civil como a ONG Eco pelo Clima e o Movimento Negro,  agente territorial kilombola,  assessorias parlamentares, além do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, da RENAP e da UFSM (NIJuC-R e Observatório dos Direitos Humanos).

Coordenado por Kilombolas, o Encontro iniciou com a fala das comunidades kilombolas, sem a costumeira “mesa de autoridades”, que carrega o peso colonialista e costuma reservar às comunidades o lugar de expectadoras e expectadores. Representantes dos órgãos públicos presentes, escutaram atentamente o relato da luta constante destas comunidades contra o racismo institucional, que ameaça os direitos étnicos e os territórios tradicionais – como é o caso de São Miguel dos Pretos.

Até hoje eu sinto o sangue escorrer nas minhas costas, até hoje eu sinto o meu irmão que perdeu a vida lutando…” (depoimento de integrante da comunidade Kilombola São Miguel dos Pretos, durante o Encontro Kilombola)

Após as falas das comunidades, houve momento para que cada órgãos público presente pudesse expor seu contexto de atuação, suas políticas e seus programas, para posterior debate.

O Programa de Crédito Fundiário foi problematizado pelas comunidades por não ser adequado à realidade kilombola, ser inapropriado para Povos e Comunidades Tradicionais que possuem relação e uso coletivo do território tradicional, podendo fragilizar ainda mais a consolidação desse direito, que já está tão violado. Da mesma forma, as políticas agrícolas foram problematizadas (incluindo o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar – CAF e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF) pois estes Programas foram pensados para a agricultura familiar e não para os sistemas agrícolas e pecuários tradicionais kilombolas. A plenária afirmou: “Temos direito a uma política agropecuária adequada a nossa história e nossa cultura, de caráter reparatório e indenizatório, com recorte racial e a fundo perdido. Basta de financiamento bancário inadequado e que reproduz o colonialismo e o racismo estrutural.

Ainda sobre o direito ao território, foi levantada a necessidade de implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) kilombola e a importância da promoção do autocadastramento das comunidades na Plataforma Territórios Tradicionais, iniciativa do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e do MPF.

O apoio, especialmente do MDA, para a elaboração de Protocolos autônomos de consulta previa, livre e informada nas comunidades, também foi enfatizado, especialmente em um contexto onde as comunidades tem se sentido cada vez mais desrespeitadas, não só pelo Estado, mas também pelas Universidades, que realizam pesquisas sem o devido consentimento, ou sem a devida devolução dos estudos, muitas vezes em temáticas que não são aquelas que atendem aos interesses kilombolas.

Houve debate e proposta de que a elaboração e o detalhamento das políticas públicas passem a ser construídas junto com às comunidades kilombolas, dentro dos seus  territórios, para que estejam mais adequadas à realidade e considerem as soluções pensadas coletivamente e com protagonismo das comunidades, deixando de ser tão assistencialistas, para ser cada vez mais estruturantes e emancipatórias.

A educação foi outra temática debatida e apontada como urgente, especialmente a necessidade de se avançar no processo de reconhecimento da Escola Municipal de Ensino Fundamental Manuel Albino Carvalho, existente na comunidade São Miguel dos Pretos, como uma escola kilombola. Também sobre a necessidade de incluir processos de educação antirracista e de educação kilombola, junto a rede pública de educação, podendo se dar no âmbito de Termos de Execução Descentralizada (TEDs), a exemplo do TED em andamento entre o INCRA e a UFSM.

Outras denúncias de violações de direitos foram trazidos pelas comunidades, como o custo absurdamente excessivo da energia elétrica, a contaminação por agrotóxicos, a insegurança hídrica, as condições das estradas que dificultam o acesso, dentre outros.

O MDA e o INCRA também expuseram sobre os trabalhos em andamento, a exemplo de 5 Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) e da realização da Mesa kilombola prevista para dia 26 de setmbro,  e informaram sobre o orçamento historicamente limitado.

Ao final do Encontro foi entregue um documento elaborado por 20 comunidades kilombolas ao longo de vários meses (durante o Curso de Operadoras e Operadores de Direitos Étnicos e Coletivos) e que sistematizou as principais violações de direitos e as principais demandas das comunidades Kilombolas do Pampa.

Acesse o Documento na íntegra, no link:  Documento final _Operadorxs Direitos Kilombolas_24.08.2025

Abaixo a síntese das solicitações contidas no Documento:

 

ÀS AUTORIDADES,

  • Ministério Público Federal (MPF)
  • Defensoria Pública da União (DPU)
  • Defensoria Pública do Estado (DPE-RS)
  • Governo Federal e seus Ministérios (MDA, MIR, MMA, MDH, MEC)
  • Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
  • Fundação Cultural Palmares (FCP)
  • Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
  • Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do RS (IPHAE-RS)
  • Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH)

SOLICITAMOS PROVIDÊNCIAS QUANTO AO:

  • Monitoramento das violações de direitos de kilombolas do Pampa por grandes projetos econômicos e de alto impacto ambiental;
  • Monitoramento das violações de direitos de kilombolas do Pampa relacionadas ao uso inadequado de recursos públicos, que deveriam ser destinados à kilombolas;
  • Monitoramento das violações de direitos de kilombolas do Pampa derivadas da morosidade do processo de regularização fundiária: invasão de terras, insegurança hídrica e alimentar, etc;
  • Suspensão da sentença proferida pela 3ª Vara Federal de Santa Maria, para a justa e devida manutenção da Portaria n.º 258/2007 e do processo administrativo no INCRA que reconhece oficialmente o território tradicional da comunidade Kilombola São Miguel dos Pretos em Restinga Seca, RS;
  • Providências para destravar processos de Regularização Fundiária no Pampa.

ESPECIFICAMENTE, AO INCRA, SOLICITAMOS:

  • Especial atenção para que OCORRAM AVANÇOS CONCRETOS nos processos de regularização fundiária abaixo listados, das comunidades kilombolas que assinam este documento;
  • Mesa de diálogo constante, com protagonismo kilombola, para acompanhamento dos processos relativos a regularização fundiária kilombolas.