A reunião do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), que aconteceu no dia 7 de dezembro de 2021, chamou atenção pela pauta do órgão, que é vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), da ministra Damares Alves. Entre os assuntos previstos, estava a discussão sobre os critérios para incluir garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais.
“Os Conselheiros e Conselheiras da sociedade civil que compõe este Conselho Nacional, no dia 07 de dezembro de 2021, durante o primeiro dia da 11° reunião ordinária (virtual), depararam-se com a divulgação errônea de proposta de pauta que continha informações que ainda precisavam de aprimoramento prévio para ser divulgada e colocada como pauta oficial do conselho. Um dos itens que chamou atenção e que teve muito alarde foi em relação ao item “Votação para composição da Câmara Técnica (Reconhecimento dos Povos Garimpeiro e Pecuarista como PCTs). As pautas são propostas pelos conselheiros e conselheiras e pela Secretaria do Conselho – SEPPIR e segue o rito da construção conjunta, e esta pauta específica foi proposta pela Secretaria. Mesmo com o pedido de adequação da pauta solicitada por e-mail pelo presidente no dia 06 de dezembro, não houve o atendimento de adequação anterior à reunião do conselho, resultando na problemática criada por difusão de informações errôneas e inverídicas da pauta publicizada.”
No documento, o CNPCT também reiterou sua posição histórica em defesa dos direitos dos Povos e Comunidades tradicionais; contra a destruição dos territórios por meio de grandes projetos desenvolvimentistas (muitos deles governamentais); contra a mineração em territórios indígenas e em unidades de conservação; e contra quaisquer atividades que ameacem destruir o modo de vida e territórios tradicionais.
Ao que parece, a pauta dos garimpeiros pode ter sido misturada com o pleito de pecuaristas familiares do Bioma Pampa pelo reconhecimento da sua identidade como Povo Tradicional. No entanto, nem o pedido e nem a atuação do MPF gaúcho fazem qualquer menção a garimpeiros.
“Aqui, há uma harmonia com o meio ambiente, com o bioma Pampa. A gente lamenta que nosso pleito tenha sido misturado com o de garimpeiros. Não temos nada a ver com isso”, afirmou Fernando Pires Moraes Aristimunho, pecuarista familiar, coordenador do Comitê dos Povos e Comunidades tradicionais do Pampa e assessor de projetos da Fundação Luterana de Diaconia (FLD).
ENTENDA A ATUAÇÃO DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS NA BUSCA PELO RECONHECIMENTO DE PECUARISTAS FAMILIARES COMO POVO TRADICIONAL
O Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, desde a sua criação em 2015, vem buscando o reconhecimento da Identidade Sociocultural de Pecuaristas Familiares do Pampa como uma identidade associada ao bioma. No livro Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, lançado em 2016 em parceria com a Fundação Luterana de Diaconia (FLD), destacou-se que ser Pecuarista Familiar está além da atividade econômica desenvolvida. “Tem que gostar, observar, interagir e cuidar. Cuidar da terra, dos animais e do lugar onde se vive. É um modo de ser e de viver próprio, orientado pelos ciclos naturais, das plantas e dos animais. Através da pecuária, valoriza o campo nativo e não agride o ambiente e as paisagens” (Pág 72).
Em parceria com a Associação Para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (ADAC), o Comitê enviou, em 2016, uma carta ao Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) apresentando e pedindo o reconhecimento dessa identidade pelo conselho. O reconhecimento soma forças junto às outras identidades socioculturais que habitam este bioma, como: Povos Indígenas, Kilombolas, Povo Pomerano, Povo de Terreiro, Povo Cigano, Pescadoras e Pescadores Artesanais, Benzedeiras e Benzedores, e que têm, nos diferentes ecossistemas que compõem o território, os seus bens comuns.
“O Bioma Pampa vem a passos largos sendo degradado pelo avanço do capital agroindustrial, monocultivo de soja, milho, arroz, de florestas plantadas, e de grandes projetos de mineração. Nossa luta tem sido constante. Acreditamos na Pecuária Familiar muito mais do que num sistema produtivo, e sim como um Modo de Vida, uma Identidade Sociocultural do Pampa. Uma maneira de ver o mundo e de interagir com seus eventos, ancorada em valores ancestrais.”, afirma Fernando.
A pecuária familiar como identidade sociocultural do Pampa foi argumento fundante para o manifesto entregue ao Ministério Público Federal (MPF) em Bagé (RS), no dia 17 de dezembro de 2019, data que marca o dia do Bioma Pampa. O documento desenvolvido pelo Comitê foi baseado em entrevistas com pecuaristas familiares de Três Estradas, de Lavras do Sul (RS), dizendo NÃO à mineração de fosfato da empresa Águia Metais no território (processo 1.29.001.000136/2017-92).
Como resultado, o MPF solicitou, ainda em janeiro de 2020, ao Centro Nacional de Perícia da Procuradoria Geral da República/MPF um Laudo Pericial Antropológico para “Verificar a possível caracterização dos ‘pecuaristas familiares’ como população tradicional presente na área de influência do empreendimento, para os fins do Decreto nº 6.040/2007 e a Convenção OIT nº 169.”
Segundo o laudo antropológico, as características do modo de vida das famílias moradoras na comunidade Três Estradas, em Lavras do Sul (RS), associado às suas relações de trabalho (manejo e convivência com os animais e o meio ambiente no qual estão inseridas), é o que possibilita sua forma de reprodução social, econômica e cultural, caracterizando seu Modo de Vida como único, sendo, portanto, um grupo culturalmente diferenciado, que se autodefine Pecuarista Familiar.
“A força identitária pecuarista familiar reside em redes de interações sociais e ecológicas que se reproduzem no espaço onde habitam, e em nenhum outro lugar. Uma identidade intrinsecamente vinculada ao bioma: longe dos campos nativos o pecuarista familiar não existe; e nisso se afasta bastante do produtor rural que, dependendo basicamente de fatores econômicos, é capaz de se reproduzir em qualquer ambiente. O pecuarista familiar, pelo contrário, tem com o Pampa uma conexão que é de outra natureza, é simbiótica: se você não tem o campo nativo, você não tem o pecuarista familiar. O respeito à sua integridade ambiental é, por isso, um respeito à própria identidade; um movimento de autopreservação. Não se trata de conservar apenas um recurso material, passível eventualmente de ser substituído por outro, mas de um recurso simbólico e social que se refere à própria existência.” (Pag.29)
Em agosto do 2020, considerando a conclusão inequívoca do laudo pericial, o Comitê solicitou ao MPF que recomendasse à FEPAM a anulação imediata da Licença Prévia concedida ao empreendedor para execução do Projeto Fosfato Três Estradas.