Muitos acampamentos não têm acesso a saneamento básico, água encanada e energia elétrica. Foto: Associação dos Ciganos Itinerantes do Rio Grande do Sul (ACIRGS)
Em outubro de 2020, a transmissão do coronavírus foi classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia. Atingir a escala global, no entanto, não significou universalidade no acesso aos cuidados necessários. Para os povos nômades do Brasil, populações integradas pelo povo cigano, circenses e parquistas, o período agravou dificuldades no acesso à saúde e à alimentação.
Segundo Rose Winter, presidente da Associação dos Ciganos Itinerantes do Rio Grande do Sul (ACIRGS) e integrante do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, agentes públicos do sistema de saúde não estão capacitados para o atendimento das comunidades ciganas, principalmente durante a pandemia. “Apesar de termos leis, os atendentes não têm capacitação para atender os povos tradicionais. Nós chegamos em lugares e não somos atendidas. O cigano não pode sair com um livro para apontar onde estão as leis na constituição, muitos sequer sabem ler”, ressalta.
As famílias ciganas que vivem em acampamentos, assim como muitos artistas circenses, não possuem moradia fixa, por isso, não contam com comprovante de residência. De acordo com a Portaria nº 940 do Ministério da Saúde, que regulamenta o Sistema Cartão Nacional de Saúde, não é necessário, aos ciganos nômades, a apresentação do documento para cadastro ou atendimento.
Em Porto Alegre, durante a campanha de vacinação contra a covid-19, iniciada em janeiro para grupos prioritários, a imunização exigia a apresentação de documento de identidade, com CPF, e comprovante de residência. Apenas em setembro, a prefeitura do município dispensou a necessidade do documento residencial.
De acordo com Rose Winter, a falta de moradia fixa foi apenas um dos empecilhos para o acesso da população cigana às vacinas. Para ela, os povos romanis, como também são chamados os ciganos, deveriam ter sido incluídos nos grupos prioritários, ao lado das comunidades tradicionais, desde o início da campanha, o que não ocorreu.
A afirmação da presidente da ACIRGS leva em consideração a situação de vulnerabilidade da maioria dos acampamentos em que vivem, além de práticas culturais das comunidades. “No momento que o cigano precisava ser considerado como minoria carente, fomos excluídos do calendário de vacinação. Foi feito um pedido para a 6º Câmara de Brasília, para que a Secretaria Nacional de Saúde reconhecesse como grupo prioritário, mas não foi enviado nenhum documento aos estados para que fossemos inseridos, somente informado que os ciganos deveriam ser vacinados conforme a idade. Mas muitos não possuem nem documento de identidade para comprovar”, destaca Rose.
A Portaria nº 940 ainda inclui pessoas em situação de rua, mas não menciona circenses e parquistas, que são itinerantes e passam por situações semelhantes nos postos de saúde. Gerente do circo Partage e artista circense, Márcio Lopes Peixoto relata que enfrentou dificuldades para ter acesso à vacinação, tanto para ele, quanto para os familiares.
Enquanto alguns artistas do circo conseguiram a imunização com alvarás de funcionamento do governo ou contas de energia elétrica, a vacinação para Márcio só foi possível com a apresentação do comprovante residencial emprestado de um amigo. “Foi bem complicado, no começo eles pediam o comprovante, e nós não temos. Eu estava em Xangri-lá e só fui me vacinar em Esteio, através de um amigo meu, porque ele disse eu era o tio dele, pegamos o endereço e fomos para vacinar. E deu certo”, conta.
A vida itinerante
Diferente do que compõe o imaginário dos não-ciganos, a vivência em barracas não está relacionada, exclusivamente, com a cultura dos povos romanis. A forma de moradia se tornou uma necessidade diante da realidade socioeconômica das famílias.
Na maioria das vezes, os acampamentos em que vivem não têm saneamento básico, acesso à água encanada ou energia elétrica. “Quem entra no universo cigano quer ver aquela coisa das redes sociais, do cigano de cavalo branco com uma rosa na boca, dançando, mas não é essa a realidade. Imagina uma mulher com 9 meses de gravidez, dentro de uma barraca, sem água, sem luz, sem banheiro. Para não dizer que nunca conseguimos um banheiro químico aqui no Rio Grande do Sul, uma vez conseguimos em Torres”, afirma Rose Winter.
A realidade é similar à retratada em 2014, pela publicação “A Unidade na Diversidade: Aspectos sobre a Construção da Identidade Cigana” da pesquisadora Débora Soares Karpowicz, que coletou relatos em um acampamento cigano em Gravataí. “Eu acredito que o sonho de todo o cigano é ter a sua casa […]. Se não tem, é porque não pode ainda”, disse uma das moradoras.
A ocupação dos comércios informais é outro motivo da itinerância: muitas comunidades vivem do trabalho informal, com a venda de roupas, a troca de produtos, a quiromancia e o tarô, além das atividades de circo e parque de diversões, que reúnem ciganos e não-ciganos.
Para circenses, a vida itinerante costuma ser repassada por gerações. Muitas vezes, circos são formados por famílias inteiras, que mantêm a forma de arte e trabalho praticada pelas pessoas mais velhas. Da mesma forma, ocorre no circo Partage, criado por Márcio no município de Viamão. “Aqui estamos em família, eu e meus filhos trabalhávamos como empregados em circo. Agora, têm minhas noras, meus netos, todos trabalham juntos”, conta. Quando estavam com as atividades paradas, as e os artistas tiveram que encontrar formas diferentes para apresentar os espetáculos. “Começamos a levar personagens para o meio da avenida para fazer um pedágio solidário, e deu certo”.
Atualmente, o circo, que tem lotação para 800 pessoas, retoma as atividades presenciais. Márcio destaca que a bilheteria não chega a vender 100 ingressos por apresentação. Por conta da pandemia, as contas de luz chegaram aos 20 mil reais, com parte do pagamento pendente até hoje.
Pandemia agravou a fome
O auxílio emergencial, disponibilizado pelo governo federal às famílias vulneráveis, não foi concedido a inúmeras comunidades ciganas, por conta da burocracia relacionada aos documentos. Sem renda, muitas comunidades não têm condições financeiras para arcar com a alimentação.
Já no circo Partage, os circenses contaram com a contribuição da população. “Em Osório, nós ganhamos muitas cestas básicas, é uma cidade maravilhosa que nos ajudou muito. Foi aí que vimos que a gente não estava só”, afirma Márcio. “Duas moças aqui do circo tiveram filhos durante a pandemia, então foi muito bacana saber que as pessoas ajudaram a gente.”
Por outro lado, Rose Winter, que é cigana, teve uma experiência diferente ao pedir doações durante essa fase. Ela conta que uma família cigana, atualmente em São Leopoldo, pediu ajuda da Associação, após passarem dias sem alimentação. “Eu peguei todas as coisas que eu tinha, minhas panelas, levei tudo pra lá e fizemos comida”, relembra. Como a solução não era permanente e havia relutância por parte da população para fazer doações, Rose escreveu um texto questionando autoridades. De acordo com ela, o pedido teve repercussão e, enfim, as famílias foram amparadas com cestas básicas.
Na imagem, cigana Rose Winter, que também coordena o grupo cultural “Caravana Esmeralda”. Foto: Associação dos Ciganos Itinerantes do Rio Grande do Sul (ACIRGS)
Povos nômades e o poder público
Já para a distribuição de cestas básicas, informou que a prioridade tem sido áreas indígenas e territórios quilombolas, mas que parcerias com governos estaduais foram realizadas para atender aos povos ciganos.
Quanto à saúde das comunidades, existem diretrizes do SUS sobre o atendimento das comunidades em unidades de saúde, que deveriam assegurar a equidade na atenção primária. Em 2016, o Ministério da Saúde, em parceria com a Associação Internacional Maylê Sara Kalí lançou a cartilha “Subsídios para o Cuidado à Saúde do Povo Cigano”, que destaca a necessidade de gerar conhecimento para o conjunto de profissionais de saúde – gestoras e gestores de políticas públicas, agentes comunitárias e comunitários de saúde, médicas e médicos, enfermeiras e enfermeiros e demais.
No entanto, os relatos de Rose sobre o atendimento prestado à população cigana no sistema público demonstram preconceito e descaso por parte tanto de profissionais de saúde quanto das autoridades governamentais.
É importante ressaltar que os povos ciganos não são homogêneos e os dados acerca dessa população não são precisos. Desde 2014, os povos ciganos não aparecem nas pesquisas municipais do IBGE. Na época, eram 233 acampamentos, localizados na região Sul do país.
Em novembro deste ano, Rose Winter participou do debate “A saúde do povo cigano: cultura, políticas públicas e legislações”, promovido pelo governo estadual do Rio Grande do Sul, em parceria com a ACIRGS e o Comitê de Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa. De acordo com o governo estadual, o objetivo da iniciativa foi a capacitação de profissionais de saúde sobre o tema.
No mês passado, o Ministério da Saúde afirmou que irá incluir populações circenses, povos ciganos e populações em situação nômade no ConecteSUS. Para anunciar a ação, a Secretaria Especial da Cultura e a Funarte lançaram a campanha e a cartilha “Respeitável Circo!”. Segundo o governo federal, o material “visa manter o cuidado contínuo dessas populações no âmbito da Atenção Primária à Saúde e possibilitar o registro e acompanhamento da população itinerante por profissionais de saúde e os gestores”.
Por outro lado, são diversos casos de agentes do poder público que perpetuam as discriminações e violações de direitos aos povos itinerantes, especialmente ciganos. Em Paim Filho, interior do Rio Grande do Sul, famílias ciganas foram expulsas do local onde armaram acampamento. Após se estabelecerem em uma área de ocupação tradicional do grupo, no final de maio, a prefeitura da cidade entrou com uma ação de reintegração de posse na Justiça, para que fossem obrigados a se retirarem do local. O argumento utilizado pela administração municipal foi de evitar aglomerações.
Em entrevista à Agência Brasil, o advogado Marcelo Almeida, que atua em casos da população cigana, destacou: “Quando os ciganos estabelecem acampamentos, eles permanecem mais reclusos no local, ainda mais no contexto da pandemia. Além disso, os locais onde eles acampam representam a casa deles, o seu território tradicional de ocupação. Eles têm esse sentimento, muitos nasceram nesses acampamentos”.
No caso noticiado, a Justiça não concedeu a liminar de reintegração de posse ao município e garantiu a permanência das e dos ciganos no local, mas acabaram, dias depois, decidindo deixar a cidade.
- Para conferir o primeiro episódio do podcast Vidas Itinerantes, que conta com a participação do circense Márcio Lopes Peixoto, CLIQUE AQUI.